Estava lendo uma introdução às idéias da psicanalista francesa Françoise Dolto, e encontrei formulações muito interessantes sobre a imagem do corpo. Na verdade, o conceito mais original da teoria de Dolto é a “imagem inconsciente do corpo”, isto é, uma imagem que se forma antes mesmo do estádio do espelho , de Lacan.

O estádio do espelho, sucintamente, é o momento em que o sujeito “adquire” um corpo para chamar de eu: a criança pode destacar na imagem refletida no espelho a parte que corresponde ao seu próprio corpo para então imaginarizar sua relação com tudo o que é outro (pessoas e coisas). Penso que ela pode fazer isso porque percebe que parte da imagem pode controlar a partir de sua vontade. A partir daí, constitui-se um “eu”, que está do lado de cá do espelho, e um “mim”, na imagem refletida. Para meu entendimento, comparo esse corpo refletido no espelho, que assumo como meu, à peça com que opero num jogo de tabuleiro. Preciso desse corpo, para entrar no jogo da linguagem.

Dolto, me parece, vai mais longe que Lacan na formalização de suas reflexões sobre o corpo. Ela propõe que existe uma imagem inconsciente do corpo, que fica recalcada após o estádio do espelho. (Podemos encontrar essa idéia em Lacan, no esquema do espelho côncavo, mas não expressa com tanta clareza quanto na teoria de Dolto). Essa imagem inconsciente é formada a partir da percepção da própria respiração, da circulação sanguínea, do seio, do contato com o corpo da mãe.

Esse assunto me interessa particularmente por conta do trabalho com pacientes de vitiligo, na Rede de Pesquisa de Psicossomática do Forum do Campo Laniano de São Paulo.

Há um ano escuto esses pacientes, acompanhando as consultas dos dermatologistas. Numa conversa com o Dr. Celso Lopes, ele colocou uma proposição em tom de pergunta: “Como pode tanta agressão … tanta destruição …?” Respondi: “Talvez não se trata de destruição: talvez se trate de uma construção.”

Uma das hipóteses etiológicas para o vitiligo, é de que este seja uma afecção auto-imune, com possível origem psíquica. Isto é o que investigamos na rede de pesquisa.

Minha hipótese é de que algo tenha falhado na constituição da imagem corporal e, ao invés de formá-la psiquicamente, o paciente o faz, inconscientemente, na carne. É como se o paciente não tivesse corpo, e precisasse esculpi-lo no próprio organismo. Sendo assim, a agressividade que destrói os melanócitos do paciente de vitiligo, é equivalente à agressividade do cinzel de um escultor no bloco de mármore.

Operações conscientes para construção de um corpo são comuns: acontecem todos os dias nas academias de ginástica, clínicas de cirurgia plástica, estúdios de tatuagem e piercing etc. Penso que no caso das afecções psicossomáticas, que precisam ser diferenciadas das conversões histéricas, essas operações são inconscientes.